domingo, 27 de dezembro de 2015

a cidade - como chama a cidade

a cidade

a cidade cede luzes, cede asfalto
a seus ratos e baratas, sua elite
requebrando um pé descalço, um salto alto
altos brados vai cantando o novo hit

a cidade pede grana, teme assalto
furiosa, e que ninguém desacredite
litorânea, lá da serra, do planalto
pisa fundo, passa muito do limite

a cidade passa a noite inteira insone
e amanhece criticando a vizinhança
a cidade, perna fina e silicone

quer memória, quer notícia e confiança
muito embora peça nome e telefone
a cidade não te espera nem te alcança

***

como chama a cidade

no centro e periferia respiram
baratas, humanos e ratos
os cheiros de cama e mesa
nos parques, nos condomínios
humanos, baratas, ratos
vigiam os seus parceiros
o reflexo, o tempo, o trânsito
há postos de gasolina, alvos móveis
barganhas de vários tamanhos
farmácia, desastre, elite
as lendas com seus retratos
os jingles que viram hits
chantagens, zumbidos, luzes
acompanhantes humanos
há fomes e línguas falam
dos preços, de seus princípios
concreto firmando história
desaba de seus limites
a vida na cidade permanece, parasita
as vindas, vendas e avenidas principais
os nomes e o renome da cidade.

quinta-feira, 24 de dezembro de 2015

outro ontem

o dia foi-se tarde sem ter sido
notado pra futuros calendários
um dentre tantos outros, ordinário
na média e sem remédio – já perdido

(é madrugada, amigo, então, sossegue
não troque a ansiedade por tristeza)

a noite é curta e já começa tarde
depois dos tons laranja e cor de rosa
no escuro a sintonia é mais dolosa
a  insônia sóbria, o sono mais covarde

(é madrugada e tudo é permitido,
mas cada passo em falso é vigiado)

é madrugada, amigo, na bodega
e as cobras que se escondam pelos cantos
aqui são todos sóbrios, sábios, santos
ninguém mais quebra copos, tratos, regras

(esqueça, como dizem: tudo passa
o dia vem chegando renovado)

quarta-feira, 23 de dezembro de 2015

Amo-te

I

amo-te tanto que te quero morta
que diminuas, vires só lembrança
vai, some, bate atrás de ti a porta
e jamais voltes, pago-te a mudança

ou corres risco de eu buscar vingança
de um sentimento que não se suporta
e toda noite sobre mim avança
me tira o sono e o meu pior exorta

amo-te muito e é sempre perigoso
qualquer bom tempo serve de antegozo
de acontecências de tragédia e horror

amo-te muito, não quero, por isso
ficar tão perto, sei do precipício
e do tormento deste meu amor.

***

II

amo-te tanto, mesmo insano, e aceito
que a violência do teu sentimento
te deixa bobo, raciocínio lento
mas me precisas do lado no leito

intensidades são nossos defeitos
e o teu domínio define o momento
amo-te tanto que a mim arrebento
e não há fuga nem volta, suspeito

amo-te, creio, me puseste algemas
e te encarceras, medidas extremas
e me sustentas como fosse um vício

e porque espero desculpas e penas
e insanidades são coisas pequenas
amo-te tanto que ainda morro disso.

terça-feira, 15 de dezembro de 2015

Noé

Eu quero que esta chuva que vem mansa
em breve seja mais que tempestade
que faça decretar calamidade
transborde o rio, alague a vizinhança

que vingue toda mágoa enquanto avança
caindo fria sobre esta cidade
arraste indiferença, ódio e maldade
enquanto desenterra uma esperança

espero que esta nuvem seja enorme
e a chuva em tempestade se transforme
depois vire tormenta, furacão

que envergue a vida em vento e violência
até lavar o chão das consciências
até que o mundo alcance a redenção

quinta-feira, 10 de dezembro de 2015

Madrigal

teu beijo e madrugada se eterniza
aflita toda tara
o cheiro de horizonte nesta brisa

achada rima rara
e a desculpa precisa
o dia nos espia enquanto aclara

madrugam beijos e amanheço insone
o corpo sem acordo

a fome fica enorme quando mordo
e o gosto tem teu nome.

terça-feira, 8 de dezembro de 2015

canalha

mais canalha que covarde
mais empáfia que juízo
quando acordo já é tarde
corro atrás do prejuízo

fumo, bebo e faço alarde,
levo  fácil meu sorriso
vai ter festa? então me aguarde
pro sermão não é preciso.

pois não sei falar mais baixo
nem dispenso um palavrão
no bom senso eu não me encaixo

entro sempre em confusão
é melhor que estar debaixo
da cama, co cu na mão.

sábado, 28 de novembro de 2015

Quarto e sala

restou-me esta tristeza tão doída
sozinho tudo agora é descompasso
o mau humor lotou meu pouco espaço
me aperto aqui sem sono nem saída

sobrei com louça, roupa e minha vida
e caravanas ladram quando eu passo
a memória organiza um panelaço
exige a direção que foi perdida

fiquei com microondas, frigobar
e a cada dia mais roto e rasgado
querendo e tendo medo de encontrá-la

eu só, sem lado ou voz, sem vez nem par
sofrendo e tendo dó do meu estado
fritando a noite neste quarto e sala

quinta-feira, 26 de novembro de 2015

Da diarreia de D. Pedro I


numa mula, e co uma bruta diarreia
nosso príncipe D. Pedro enfim se zanga
lendo a carta ali, às margens do Ipiranga
e resolve entrar pra história da plateia

se sentindo a mais rainha da colmeia
solta um berro pra juntar os seus capangas
sobe um morro, tira a espada e solta a franga
diz "nem morto abdicarei de minha aldeia

vou seguir esta novíssima tendência
- impressiona como a Europa anda mudada -
vocês paguem pela minha independência

e eu não volto, reino aqui, não pega nada
que se cumpra, diga ao povo, dê ciência
com licença que eu vou dar outra cagada

domingo, 15 de novembro de 2015

Medindo a crítica

Definitivamente de mau gosto
aprisionar o verso com a métrica
A forma antiga usar? coisa patética!
arrisca a descambar pro lado oposto


por isso eu vim aqui deixar exposto o
desgosto que me dá tão tosca estética
pra mim é um atentado contra a ética
escritor que se preza vira o rosto

Porque se fosse assim bastava a prática
quem dominasse bem a matemática
poderia alegar que tem talento

mas não, só livre o texto é poesia
a forma fixa dá claustrofobia
se for pra medir verso eu me aposento.

segunda-feira, 21 de setembro de 2015

preamar

a lua brilha intensa, o mar aumenta
enquanto a pedra ecoa a voz do vento
a areia aonde a onda se arrebenta
convida à caminhada em passo lento

é preamar, mar cresce e se acrescenta
à praia, à pedra, ao próprio pensamento
pois a maré, bem mais do que aparenta,
desvenda o amor no mar por um momento

é maré cheia, amor, a lua enorme
banhou de luz a noite, e o mundo dorme
alheio ao espetáculo terrestre

o céu, a noite, o amor, o mar imenso
transborda e toma a praia, é quando eu penso:
amar é a maré e o mar é mestre.

quinta-feira, 3 de setembro de 2015

Raízes africanas

não é só culinária: o mungunzá
quibebe, vatapá, jiló, tutu
canjica, feijoada, efó, o angu
cuscuz, farofa, ebó, dendê, fubá

nem é só som: o samba, o caxangá
batuque, o berimbau, o caxambu
a milonga, o agogô, guaiá, lundu
xirê pra celebrar meu orixá

ou Machado de Assis, Zumbi, Pelé
maracatu, calunga, o candomblé,
não é só ginga e gíria suburbana

Em tudo que me alegra e no que acalma
na história, na cultura, e dentro da alma
há profundas raízes africanas.

sexta-feira, 17 de julho de 2015

Reserva de mercado

—————–“Você diz que sabe muito, vaga-lume sabe mais
———Vaga-lume acende a bunda, coisa que você não faz”
—————————————————-TIBILK

Disseram, poesia não é isto
não é só discursar sobre o que eu acho
querer-me imperador, ver_me capacho
arrotar heresia, achar_me o Cristo

não basta sonetar, mas nisso insisto
às vezes como quem faz um despacho
porque o buraco eu cria mais embaixo
sem tal burocracia – exigir visto

Sou contra essa reserva de mercado
mas por mim tá de boa, é sossegado
eu deixo as tais batatas, sem ciúmes

se a escrita é só pra gente tão profunda
que é culta, inteligente e acende a bunda
melhor até que os próprios vaga-lumes.

terça-feira, 16 de junho de 2015

costume

.

devia que esta cor nem fosse minha
quem dera aquela festa alucinada
prefiro a flor a fresta havia a escada
conselho nem consenso a Tina tinha

te juro não contei vinha a vizinha
jamais que aplaudiria é quase nada
seis cestos de seiscentos três de cada
enquanto a corda acerta um vento alinha

pedia que essa dor só fosse sua
não sei se crua a moça a vida escrava
jamais na poesia há pena alguma

achei a noite linda estrela e nua
jurava que domina a mina estava
depois que for comum ‘cê se acostuma 

quarta-feira, 27 de maio de 2015

A maldade

Você vem defender que é ser justo
mas eu vejo, a maldade permeia
e é tão triste, tão tosca, é tão feia
que não dá pra encará-la sem susto

Orgulhosa de si, infla o busto
co o veneno pulsando na veia
segue em cacos pisando, não freia
porque importa vencer, não o custo

E você, por feitiço encantado,
da perversa se fez aliado
porque pensa seguir o direito

E então caça com fúria animal
atropela, arrebenta, e afinal
qual justiça se faz desse jeito?

domingo, 17 de maio de 2015

Displicências

porque foram só mistérios sem enredo
que fizeram nada o pouco que restara
do carinho que acabava tão na cara
já cansada e mal dormida desde cedo

porque foram só silêncios, não histórias,
que fizeram gumes, cacos e demências
e não foram nada além de displicências
assanhando nossa verve acusatória

quando eu olho pro passado fico tenso
percebendo as rugas, rusgas dessas horas
nos espelhos, minha cara, quando penso

no suspenso, no não ser e nu lá fora
sinto dor, melancolia, um ódio imenso
do que foi, de como eu fui, do que é o agora.


sexta-feira, 15 de maio de 2015

Agouro

O medo que me dá meu olho esquerdo
enquanto me anuncia uma tragédia
tremendo, que não vou sofrer de tédio
meu olho prenuncia que vem merda

O dia fica estranho, eu fico aéreo
co a porta da crendice meio aberta
rangendo, e como a coisa fosse séria
meu medo um olho observa bem de perto

O risco que me esgarça até o avesso
num cerco que se aperta e me dispersa
pressinto não sabendo se mereço
meu mundo gira lento e controverso

Um olho que executa meu sequestro
me ataca, e toda culpa se confessa
aguardo que o destino bote o preço
do quanto eu trago escrito em minha testa

quarta-feira, 29 de abril de 2015

Declaração

eu hoje declarei a minha renda
e, é claro, fiquei puto, um trem de louco
trabalhei pra caralho, ganhei pouco
e ainda estou devendo pra Fazenda

pois por favor me explique quem entenda

como é que quem me assalta exige o troco?
passei meu ano inteiro no sufoco
e agora essa outra conta em minha agenda?

300 contos. uma grana séria

pra quem já paga imposto o ano inteiro
e, além de tudo, ganha uma miséria

e ainda cobram "renda" a meu dinheiro

agora eu vendo um rim e as minhas férias
ou pago só no décimo-terceiro

quinta-feira, 16 de abril de 2015

Ainda

e continuo, versos valem pouco
usando rima rica ou infeliz
bem vindos são o tolo e a meretriz
e mesmo embriagado ou muito louco

ainda há encanto aqui, democracia
literatura, quem dirá o que é
se perfume francês, se meu chulé
se engloba castidade e putaria

por isso eu sigo em frente, sem frescura
se a arte estiver morta, empreste a pá
e eu peço, meu amigo, não se vá

ajude a decorar a sepultura
e saiba, se enterrada, vele a vala:
necrófilos viremos estuprá-la

quarta-feira, 8 de abril de 2015

Meu anjo

imagem: Angel - Ron Mueck

Um anjo de castigo do meu lado
se mostra, sem pudor, aborrecido
um tédio de impotência, corrompido
caído cá comigo, e desolado

Fez voto de silêncio, sem gemido
nem grito nem conflito co o pecado
seguiu-me, destemido e embaraçado,
até ficar sem cor, desiludido

Empobrecido, mudo e diminuto
debruça melancólico e saudoso
curvado pelo peso de ter asas

Um anjo só, sem glórias, guarda luto,
e aguarda, cada vez mais ansioso,
o dia de deixar a minha casa

domingo, 29 de março de 2015

Retirantes





"Retirantes", CÂNDIDO PORTINARI, 1944.

Pisando em ossos, tudo é morte e nos convida
À derrocada, a desistir desse cansaço
Desse acidente, desse horror chamado vida
Feita de dores, de incertezas e fracasso


Penando expulsos, retirantes sem saída,
Vão nossos olhos para novos endereços
Nos apoiamos nas tragédias reunidas
Em nossos corpos, carregados aos tropeços

Pois caminhamos doloridos, transtornados
Emudecidos sob um céu de desconsolos
Nossos lamentos cada vez mais ressecados
Pela miséria, pelo infértil desses solos

Abandonados, desespero e desconforto
Até que o corpo ache descanso, tombe morto

sábado, 21 de março de 2015

Quantos?

com quantas desculpas se faz um soneto
viver num caixão não lhe cansa a postura?
se finge de morto mantendo a frescura
ou busca o controle de um plano secreto?

existe remédio que cure esta febre?
qualquer droga serve ou não há que se salve?
se sofre o poeta o poema é suave
ou quando está grave é melhor que lhe quebre?

de quantos temores se faz poesia?
perverte a vontade ou respeita comando?
me empurra ou me para, sustenta ou vicia?

foi feita pra mim, pra você, todo o bando?
liberta? escraviza? dá dor e alegria?
é feita escrevendo, sentindo ou sonhando?

quarta-feira, 4 de março de 2015

Da diarreia de D. Pedro I

Sobre a mula, inda sofrendo a diarreia
nosso príncipe Dom Pedro enfim se zanga
lendo a carta ali, às margens do Ipiranga,
resolveu posar pra história e pra plateia


se sentindo a mais rainha da colmeia
decidiu fazer um show pros seus capangas,
sobe um morro, ergue a espada e solta a franga
Diz: “nem morto abdicarei de minha aldeia.


vou seguir uma novíssima tendência
(impressiona como a Europa anda mudada)
vocês morram pela minha independência


e eu não volto, reino aqui, não pega nada!
Que se cumpra, diga ao povo, dê ciência!
Com licença, que eu vou dar outra cagada.”