quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

Meu anjo

Um anjo de castigo do meu lado
Se mostra, sem pudor, aborrecido
Um tédio de impotência, corrompido
Meu anjo cá comigo, desolado

Fez voto de silêncio, nem gemido
Nem grito nem conflito com pecado
Seguiu-me destemido e embaraçado
Até ficar sem cor, desiludido

Empobrecido, mudo e diminuto
Debruça melancólico e saudoso
Curvado pelo peso de ter asas

Um anjo só, sem glórias, guarda luto,
E aguarda, cada vez mais ansioso,
O dia de deixar a minha casa.

terça-feira, 21 de dezembro de 2010

Patria filha

Gestação de pátria leva vários anos
Desavenças, muitas lutas, muito impasse
Tanto embate, é claro, sempre causa danos
Toda pátria verte sangue enquanto nasce

Uma vez nascida, o povo soberano
Na bandeira pinta a força que renasce
E a recém-nascida pátria veste o pano
como em manto de esperança se abrigasse

Quando cresce a pátria, filha de seu povo,
Retribui em dobro o quanto recebia
Às futuras gerações, um berço novo

É o abrigo, liberdade e poesia
Será fonte de utopias, do renovo
Será plena, renascente a cada dia

segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

Da diarreia de Dom Pedro I

Sobre a mula, inda sofrendo a diarreia
Nosso príncipe Dom Pedro enfim se zanga
Lendo a carta ali, às margens do Ipiranga,
Resolveu posar pra história e pra plateia

Se sentindo a mais rainha da colmeia
Decidiu fazer um show pros seus capangas,
Ergue a espada, dá chilique, solta a franga
Diz: “nem morto abdicarei de minha aldeia.

Vou seguir uma novíssima tendência
(e dizia dentre arrotos e risadas)
Vocês morram pela minha independência

que eu não volto, reino aqui, não pega nada!
Que se cumpra, diga ao povo, dê ciência,
Com licença, que eu vou dar outra cagada.”

domingo, 19 de dezembro de 2010

Operários

Somos Anitas, somos Plínios, somos Mários
e construímos como artistas verdadeiros
de muitas raças, muitas crenças, somos vários
como tijolos empilhados nos canteiros

Na mais-valia nos sabemos operários
uns novos Judas nos vendendo por dinheiros
No chão das fábricas, por míseros salários
deixamos fibras, nossas vozes, nossos cheiros

Manufaturas todas levam nossos traços
são nossos braços que produzem as riquezas
Sobram fraqueza, a pele opaca, os olhos baços

dão-nos cansaços e as rotinas e as tristezas
nossa certeza: o tempo escasso e o pouco espaço
corpo em pedaços, que nossa alma siga ilesa.

sábado, 18 de dezembro de 2010

Completo

Seus olhos impossíveis no retrato
Decerto são certezas e conflito
Caminha exuberante como um mito
e em cada traço afasta o caricato

Seu corpo expressionista é forma e fato
E a natureza planta um olho aflito
Nas tintas que lhe escapam como um grito
Liberto de vergonhas ou recato

Repleto de passados e devires
Carrega um trovoar e um arco-íris
Um lustro de medalha e seu reverso

Reflete força e dom de ser completo
Como as vinte e seis letras no alfabeto
Como um soneto em seus quatorze versos.

sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

Nêga

A Nêga não nega presença na festa
Pagode ou seresta, quem gosta se achega
Terreiro é da Nêga, que santo contesta?
É deusa imodesta, da sanha e da entrega

Seu colo aconchega a quem goza ou protesta
Quem louva ou detesta, inimigo ou colega
Paixão louca e cega e quem diz que não presta
Leseira mais besta e quem nunca sossega

A Nêga abençoa de prece e folia
Mulata alegria nas danças e cantos
Libera esse encanto de paz e alforria

Aos filhos e filhas, ungidos por tantos
Axés e acalantos da Nêga Bahia
de dengo e energia, de todos os santos.

quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

Gêmeas

Porque protestam contra todo o feio
E o tom alheio desse cinza-exato
Porque nos bustos levam mesmo anseio
E seus receios não se aceitam fato

É que perpassam lindas nesses meios
feitos de arreios, dos mais vis contratos
E desacatam livres, sem rodeios,
Os tantos freios dos eternos chatos

Porque têm olhos que colorem tudo
Porque são várias e percebem mundos
E são enormes suas forças fêmeas

Dizem tão claro que me deixam mudo
Enxergam tanto que jamais confundo
São tão diversas que parecem gêmeas.

sábado, 11 de dezembro de 2010

Retirantes

Pisando em ossos, tudo é morte e nos convida
À derrocada, a desistir desse cansaço
Desse acidente, desse horror chamado vida
Feita de dores, de incertezas e fracasso

Penando expulsos, retirantes sem saída,
Vão nossos olhos para novos endereços
Nos apoiamos nas tragédias reunidas
Em nossos corpos, carregados aos tropeços

Pois caminhamos doloridos, transtornados
Emudecidos sob um céu de desconsolos
Nossos lamentos cada vez mais ressecados
Pela miséria, pelo infértil desses solos

Abandonados, desespero e desconforto
Até que o corpo ache descanso, tombe morto